(Paulo Rebello e Lena Rebello / foto: Bernardo Rebello)
Ontem foi o dia dele.
Meu avô, velho Paulo, foi casado 63 anos com nossa avó, a velha Lena. Tiveram dois filhos e seis netos.
Ela é decoradora, espevitada, daquelas pessoas que pensa depois que fala e que distribui sorrisos doces e agradáveis. Possui uma graça engraçada, um humor instável que assusta um pouco às vezes e que faz dela aquelas pessoas que não tem cerimonia para derramar as próprias lágrimas.
Ele, como definiu meu primo, era um “construtor de estradas”. Sujeito calmo, presença plácida, elemento familiar de autoridade e comunhão. Não precisava mover os lábios para estabelecer a harmonia dos encontros familiares. Nunca nenhum dos primos saiu no braço ou tivemos discussões acaloradas.
Ele e ela construíram uma chácara simples de tijolos nos arredores de Brasília que nossa família chamava de “Mansão”. Foi lá que o velho Paulo preencheu nossas mentes de fantasias e, como bom “construtor de estradas”, pavimentou as vias para que seus netos conhecessem melhor suas origens e seu universo.
Foi nessa “Mansão” que o velho ensinou a todos seus netos a cutucar com varas os jamelões maduros, a encontrar as amoras mais doces, a subir nos pés de jaca, a temer as cobras que se escondem nas bananeiras e, principalmente, a lambuzar a face inteira com todos os tipos de manga de suas mangueiras.
Lá conhecemos também o cupuaçu, umbu, cajá, graviola, pitanga, jambu, tamarindo e até a pitomba. Como caboclo que era, o nosso velho gostava de creme de abacate e açaí com farinha.
Foi nesse universo que todos os netos descobriram o amor incondicional pelos cachorros, no meu caso, especialmente os vira-latas. Tinha cachorro de raça, de rua, hiperativo, gordo, magro, grande, lento, agil. Uns vinham só para comer e cruzar e nunca mais saiam do aconchego da “Mansão”.
Eram batizados como “Dólar”, “Brisa”, “Che” e até o comandante “Fidel” fez parte da família. Tinha até cachorro paralítico curado sem veterinário, gato de rua e siamês de alta sociedade. Minha cadela, a “Capitu”, que até hoje me acompanha e me anima, foi um presente dos meus avós para me fazer companhia durante a minha jornada de quase 3 anos no Rio de Janeiro. “Capitu”é filhote da saudosa “Furreca”, uma das vira-latas que apareceram por lá já prenhas em busca de acolhimento.
Foi na ‘Mansão” que aprendi a jogar futebol com meu avô, meu pai, o caseiro Domingos, os amigos e colegas. Até hoje escuto os gritos do meu pai: “Vai Bernardo!!”, “Corre Bernardo!!”, e me lembro das grandes defesas do irmão do meu pai, meu padrinho, que fechava o gol impedindo que nós perdêssemos por goleada.
Meu avô montou um campo de futebol com goleiras do tamanho das do Marcanã na nossa “Mansão”. Era o centro de treinamento do meu time de futebol e dos meus amigos, o chamado “Juventude azul”. Tive dificuldade de dormir por varias vezes à espera do dia seguinte, onde jogaríamos um contra na “Mansão”.
Por varias vezes o velho Paulo botava a bola pra frente quando eu não tinha com quem jogar. Mesmo sem ter a força suficiente nas pernas para fazer um gol, nós dois batemos uma bola, no toque e no passe por varias vezes.
Meu avô veio do norte, como dizia ele: “Eu sou do Acre”. Não gostava de briga, mas, como já disse, tinha autoridade e espírito aventureiro. Honrando o sobrenome de origem portuguesa, dos chamados barcos Rabelo, começou a navegar cedo na vida.
Antes dos cinco anos de idade desbravou as águas dos rios da Amazônia em sua pequena e humilde embarcação, uma bacia de metal que sua mãe e 4 irmãs mais velhas usavam para lavar roupa. Valente, sem remos e sem velas, enfrentou o fluxo das águas sem perceber seus perigos até ser resgatado por uma comunidade que temia observar a trajetória de mais um herói trágico. Os ecos dessa aventura, no entanto, continuaram a reboar ao longo de sua vida.
Também foi cedo que deixou o aconchego do lar. Saiu do Acre antes dos 18 por causa “dos estudos”, como dizia ele. Morou sozinho, na casa de outros familiares, brigou com seu professor de cálculo, desistiu de estudar, voltou atrás, foi pedido em namoro por sua futura mulher, a alemoa e velha Lena, que, por volta dos 20 anos de idade, pegou ele pelo braço e perguntou: “Escuta aqui Paulo, você gosta de mim?”
Os 63 anos de casamento foi a resposta do meu avô, que mandou a espertinha para o Acre, sem que ela conhecesse ninguém da família, e casou-se com ela via procuração, pois ele mesmo não chegou a tempo para dizer alguma coisa na cerimônia. Não chegou a tempo porque ele tinha que se formar na Universidade de engenharia, se não me engano.
Nunca vi os dois baterem boca. Meu avô nunca admitiu tratarem mal a mulher dele. Mesmo ela tendo sofrido grande influencia da Derci Gonçalves e seus palavrões, viver pegando no pé dele, nunca ter largado o cigarro e ter levado a irmã dela para morar com eles. Ele dizia: “não fala assim da minha mulher”.
Viveu boas aventuras. Quando garoto, sobreviveu ao tétano e outras doenças fatais na época. Seu caixão foi comprado em uma das ocasiões em que todos acreditavam que sua morte era certa. Matou cobra na paulada, conduziu peões por entre as matas, dormiu lado a lado com uma onça no meio do nada.
A história dele que eu mais gosto foi quando saiu numa noite para bagunçar com os amigos e lá se aproximou de uma bela jovem. Os amigos brincavam, as provocações começaram a tomar conta, os drinks começaram a ser oferecidos, uma curtição da rapaziada. Quando a noite tombou e chegou a hora das caricias do amor, o velho Paulo se oferece para conduzir a dama até o leito. A cadeira foi afastada, a dama se ergue com o apoio de apenas uma perna. Ela pega a muleta e olha meio sem jeito nos olhos do jovem caboclo engenheiro do Norte. Faz-se um silêncio entre os amigos. Velho Paulo sem pensar duas vezes, pagou a conta e conduziu a donzela até seu dossel.
Quando um de seus netos nasceu, lá pelos 40 anos de idade, decidiu parar de fumar. Pegou a calculadora e, como bom engenheiro, descobriu que tinha consumido em fumaça uma metragem suficiente para uma viagem de ida e volta a Anápolis, onde ele acabara de construir boa parte da base da Aeronáutica ali situada. Naquele dia ele colocou uma carteira de cigarro no bolso para, segundo ele, saber que tinha a fumaça caso o vicio fosse irresistível. Nunca mais fumou. Morreu de câncer nos pulmões 40 anos depois.
Sentirei imensa saudade da presença silenciosa de meu avô, espécie de peregrino que carrega reflexões e que não abria a boca para maldizer ninguém. Mesmo tomado pelo câncer nos pulmões, nunca ouvi meu avô reclamar de dor ou de nada. Nunca pediu para minha avó parar de fumar os vários cigarros diários dela. Nunca deixou de sentar na cabeceira da mesa e conduzir a orquestra com o silencio de um maestro que já nem precisa levantar a batuta para harmonizar agudos e graves. Mesmo quando já não havia forças, escutou pacientemente a conversa de todos e as provocações de sua amada. Foi generoso até o fim e nos preparou com calma para a nossa despedida. Lutou por mais de um ano contra uma metástase.
Vai com Deus Paulo de Abreu Rebello. Sempre guardarei as lembranças de tudo aquilo que você disse sem dizer nada.
Bernardo Rebello